segunda-feira, 23 de abril de 2012

Aborto e deficiência: uma fábrica de incompreensões

Por Lucio Carvalho

Poucas vezes como na semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por descriminalizar e permitir às mulheres a interrupção da gestação de fetos comprovadamente anencefálicos se falou tanto sobre o aborto no Brasil. O tema dominou, além das manchetes, as mentes de todos aqueles que estão interessados nele, sejam legisladores, juristas, religiosos, cientistas quanto os mais comuns cidadãos.



Isso acontece porque o aborto é um tema que permeia toda a sociedade, embora o silêncio habitual sobre o assunto possa fazer crer que, pelo contrário, seja um assunto de interesse restrito. A prova cabal de que isso não corresponde à realidade é a fácil verificação de que, sobre ele, praticamente não há quem não tenha opinião formada, mesmo que a divergência seja uma tônica constante. Mas as divergências, no caso da anencefalia, vão além das idiossincrasias e extrapolam vários limites do imponderável. Pelo menos é o que ficou de mais evidente na semana que passou, a considerar a repercussão na mídia nacional.
Seria inútil ou infrutífero recuperar todas as discussões em torno da própria decisão do STF, até mesmo porque elas estão longe de cessar, ou a busca por explicar novamente os conceitos científicos e parâmetros legais que levaram os ministros a dar cabo em uma polêmica que durava já cerca de uma década, desde que a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) acionou os tribunais pedindo a descriminalização do aborto neste caso em específico.
No rastro do debate que dominou a última semana, entretanto, algumas outras situações e declarações vieram a público, mesmo que de forma enviesada, na tentativa de equiparar a situação da gestação de fetos anencefálicos à condição do diagnóstico de deficiências, notadamente aquelas passíveis de investigação pré-natal. Criava-se o caldo de cultura necessário a todo o tipo de generalização, elemento indispensável na comunicação ruidosa.

Repercussão e derivações

Por todo o Brasil, artigos foram publicados, entrevistas realizadas e debates, reunindo em maior ou menor grau posições antagônicas, televisionados e difundidos à exaustão. Dificilmente, entretanto, conseguiu fugir-se a mera polarização, como se diante de um assunto tão complexo restassem apenas duas opções: a concordância ou a discordância, sendo aparentemente irrelevante sacrificar conceitos tão imprecisos como os limites da vida, da consciência ou a dignidade humana. Ao fim da votação, era tarefa relativamente simples verificar que os resultados davam margem a uma repercussão igualmente simplória: havia os que comemoravam e julgavam a decisão um avanço e, do outro lado, os que anteviam nela uma ameaça de proporções catastróficas.
Algumas declarações, como a do ex-governador e deputado federal Anthony Garotinho, de que a possível identificação precoce de deficiências como a síndrome de Down, por exemplo, resultaria em algo como um “efeito-cascata” da jurisprudência sacramentada pelo STF, foram replicadas exaustivamente pelos setores religiosos, embora os próprios ministros tenham sido veementes em relação ao conceito de “compatibilidade” com a vida. A questão levantada por Garotinho e por diversos religiosos, entretanto, não procura ser compatível com o debate em si mesmo, mas apenas com as próprias teses, além de servir de fermento à comoção religiosa.
De outro lado, há quem festeje a decisão final do Supremo como um indiscutível sinal de progresso social, uma afirmação irrevogável das liberdades individuais. É uma interpretação possível, mas não é o resultado a que chegou nenhum dos ministros em seus votos. A insinuação de que o aborto, em qualquer condição, possa ser razão de comemoração é de uma vileza atroz, principalmente para as pessoas que se encontram diante de uma decisão tão crucial, seja efetivada sob ou à revelia da lei. E o direito à opção, pretensão de muitos ativistas do movimento feminista, nunca esteve em questão. Qualquer festejo nesse sentido é temerário e atinge exatamente aos objetivos dos setores insatisfeitos com a decisão, para os quais o direito à vida não comporta o direito à liberdade, servindo-lhe igualmente de fermento.

A reforma do Código Penal e o aborto seletivo

Por trás da celeuma e além da decisão do STF, encontra-se também o resultado do trabalho de comissão de juristas recém convocada pelo Senado Federal para a elaboração de anteprojeto de reforma do Código Penal, divulgado no dia 9 de abril, um dia antes da votação sobre anencefalia no STF. No texto dos juristas, apontado como uma atualização do Código Penal para o séc. XXI, o objeto de polêmica é o texto a seguir, que se integraria ao projeto de lei: “quando a mulher for vítima de inseminação artificial com a qual não concordou; quando o feto for diagnosticado com anencefalia e outras doenças físicas ou mentais graves; e por vontade da gestante até a 12ª semana de gravidez, caso um médico ou psicólogo constatem que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade”.
Óbvio que tomar o texto de um estudo preliminar como o resultado final de um processo legislativo do porte necessário à reforma do Código Penal seria algo muito precipitado. O debate, entretanto, repousa já há bastante tempo nas preocupações da comunidade de pessoas com deficiência, tendo em vista que o avanço das pesquisas genéticas em outros países tem gerado situações bastante radicais, principalmente nos países em que o direito ao aborto é permitido. É o que aconteceu recentemente na Nova Zelândia, onde um grupo de familiares de pessoas com síndrome de Down reuniu-se para levar ao Tribunal de Justiça Internacional o governo daquele país, sob a acusação de patrocinar o aborto eugênico seletivo (ver aqui). A decisão é pendente, mas tem levado à formação de grupos de defesa em vários lugares do mundo, notadamente naqueles que asseguram o direito à opção pelo aborto.
No Brasil, um debate dessa monta ainda é bastante remoto, mas a realidade do aborto ilegal é presente e o acesso a diagnósticos de ponta não tarda a pousar por aqui. Pelo menos é o que espera o presidente da comissão de medicina fetal da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Eduardo Borges da Fonseca, que em entrevista à Veja, ainda em 2010, classificou os novos exames como “o ‘Santo Graal’ da medicina fetal”.
As deficiências e doenças de fundo genético, especialmente, encontram nessa realidade uma perspectiva complexa. Até mesmo os investimentos em pesquisa científica realizados no sentido de melhorar as condições de vida das pessoas sofrem um impacto negativo, diante da possibilidade da redução na taxa de nascimentos. Os esforços em torno do incentivo e financiamento à pesquisa têm sido imensos, como apontou o neurocientista brasileiro radicado nos EUA, Dr. Alberto Costa, responsável pelo Down Syndrome Research and Treatment Foundation e por pesquisas na área de cognição das pessoas com síndrome de Down, em reportagem publicada no NY Times em julho do ano passado.
No mundo inteiro, o número de nascimentos de condições identificáveis precocemente vem declinando de forma vertiginosa. Há dados indicando que na Espanha (ver aqui), por exemplo, o declínio de nascimentos de bebês com síndrome de Down chegaria aos 90%. Se é possível apontar a tendência global como fato inevitável e pertinente à ética do mundo contemporâneo, evidentemente isolar o Brasil desse contexto será inútil, porque os processos sociais e culturais chegarão aqui de qualquer forma.

A decisão do STF como possível “precedente”

A decisão em torno da anencefalia não significa necessariamente o prenúncio de outras “eliminações”, muito menos o amparo judicial nesses casos. O impacto imediato maior parece ser de que a decisão dos ministros do STF impõe reconhecer uma realidade cada vez mais próxima e presente, quando setores ligados à Igreja prefeririam manter amortecida a discussão. É impossível, portanto, antever a forma como o legislativo irá se organizar em relação ao novo Código Penal mas, a julgar pela composição de forças atuais e o peso das bancadas no Congresso Nacional, é possível ter alguma ideia do que vem pela frente. Equacionar o desejo social por liberdades, a dignidade da vida humana, o avanço científico, os temores religiosos e o direito à diversidade inverte qualquer espécie de dogmática e exige mais do que o exame maniqueísta da realidade. Importa à sociedade assumir a realidade, enfrentar a violência subjacente ao tema do aborto e as pessoas e grupos de pessoas assumirem para si nem tanto as próprias crenças e próprios direitos, mas principalmente o zelo pelas crenças e direitos dos outros.
Já que a problemática é complexa o bastante a ponto de gerar debates que duram muitos anos e envolve realidades sociais tão díspares, tudo o que não se precisa para o momento são de problemas artificiais, e muito menos o uso de pessoas emocionalmente vulneráveis como dinamite. Tratar os direitos das pessoas com deficiência e sua dignidade nos termos da desvantagem social não compete em vitimizá-las, como a um objeto de proteção. Pelo contrário, trata-se de percebê-las como sujeitos pertencentes à sociedade, como quaisquer outras pessoas. Então é desejável que o poder legislativo adquira maturidade e respeito por essas pessoas antes de qualquer decisão e que à opinião pública não seja despejada ainda mais incompreensão e preconceito.

Fonte: http://www.inclusive.org.br/?p=22387

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